Veríssimo no Jornal #05: O Homem Trocado


   Seguindo hoje com a nossa série resgatando o trabalho do maravilhoso Luis Fernando Veríssimo, segue mais um de seus textos brilhantes:

   O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.
   -Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
   -Eu estava com medo desta operação...
   -Por quê? Não havia risco nenhum.
   -Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...
   E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.
   -E o meu nome? Outro engano.
   -Seu nome não é Lírio?
   -Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...
   Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.
   -Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
   -O senhor não faz chamadas interurbanas?
   -Eu não tenho telefone!
   Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.
   -Por quê?
   -Ela me enganava.
   Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer:
   -O senhor está desenganado.
   Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite.
   -Se você diz que a operação foi bem...
   A enfermeira parou de sorrir.
   -Apendicite? - perguntou, hesitante. 
   -É. A operação era para tirar o apêndice.
   -Não era para trocar de sexo?

   O pior dessa história é que eu nem sei se invemtar outro final para ela é o que realmente se possa chamar de exercício de criatividade. Das duas uma: Ou ele aceita sua condição, tenta se chamar Laura, o cartório erra e coloca Lívia e os enganos se sucedem, ou alguma coisa finalmente dá certo na vida dele, só para criar uma luz no fim do túnel e quebrar os padrões. Mas eu definitivamente não sou escritor de Deus Ex Machina, então acredito que ele vai continuar se enganando até a morte quando será enterrado no lugar errado, e inclusive haverá outra família e outros conhecidos chorando sua morte enquanto o caixão desce. Como ele era pobre, não vai ter herança, mas talvez ele deixe o gato para o filho mas ele termina com o filho de outra pessoa. E assim ele terminará nas portas do inferno. Por engano, mas o diabo não paga reembolso!

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