-Porque eu?
-Dez anos!
-Qual é, Valéria! Supera! - Reclamei.
Assim que cheguei, antes que tivesse sequer a oportunidade de assinar presença, Valéria me parou no corredor já me dando as notícias. Alguém teria que ajudar ela com as vinte crianças de cinco anos que iam ficar com metade do dia vago, que não eram nem minhas, para começar. Mas, naquele momento, me veio o presságio da desgraça. Janete era religiosa e nunca começava um único dia com seus aluninhos sem a famosa "oração do bom dia". Já a Valéria acreditava tanto em escola laica quanto Bolsonaro acredita em plano de dominação comunista. Isso implica que se alguma criança mencionasse a oração, estávamos todos ferrados, começando pela Janete e passando por mim e pelos outros ali na creche que sempre souberam sobre a "oração do bom dia" e nunca disseram nada. Então, eu ia ter que ficar esperto.
Quando deu a hora, pegamos as crianças na hora da entrada. Valéria tinha sido professora também, porém, um pouco antes de eu nascer ela já tinha migrado para a direção, de onde nunca mais saiu desde então. Estaria se aposentando em breve, inclusive. Ao menos, era o que sempre prometia.
Juntamos as crianças em um espaço enquanto aguardávamos a outra turma terminar de comer e liberar espaço no refeitório. Era a hora.
-Como ela começa o dia? - Ela sussurrou para mim. - O que ela faz com eles?
-Eu não sei, nessa hora estou acordando os meus na sala do sono! - Joguei verde, também sussurrando.
-Pelos dez anos que eu perdi da minha vida por sua causa, a gente não pode ficar aqui olhando para a cara deles e sorrindo!
-O que você fazia quando era professora?
-Nós anos 80? Não importa, era só manter eles vivos! Certo, tive uma ideia!
Assim, dividiu todos eles em duplas e fez dupla comigo. Em seguida, ensinou um cumprimento com uma musiquinha que mais parecia ter saído da Galinha Pintadinha ou qualquer coisa parecida e uma coreografia bonitinha. Enfim, podia respirar aliviado por nenhuma criança ter lembrado d...
-Mas tio... - Lucas. Falei cedo demais.
-Ai, ai, ai, parece que alguém aqui não está com fome? - Acarinhei seu cabelo sorrindo. - Ouvi dizer que tem leite com chocolate no café que a turma vai tomar agora!
-Mas a tia...
-Não se contesta chocolate!
-Só que...
-Papai do céu não gosta!
-Disse o que, Bernardo? - Valéria me encarou.
-Papai noel! - Respondi, amarelo, totalmente sem jeito. - Eu disse papai noel, papai noel não gosta e não vai dar presente no fim do ano!
Silencio de três segundos constrangedor o suficiente para parecer uma eternidade, sobretudo com Valéria me encarando como se planejasse meu assassinato.
-Ok! Vamos todo mundo para o leite com chocolate, tá bom! - Comecei a conduzir as crianças, antes que mais algum questionasse. E enquanto eu mesmo fazia a oração do bom dia na minha cabeça. Estávamos precisando. Mesmo!
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