Um tio perdido na Creche #01: Piloto


   Eu sei o que você está esperando! “Ah, é um episódio piloto, eu quero saber como começou!”. Começou exatamente como começa para todo homem nessa profissão. Você descobre que não nasceu para caçar e se tentasse provavelmente transformaria coelhos em carnívoros. E depois presta um concurso onde cinqüenta mulheres numa sala ficam olhando para você ao entrar para fazer a prova e uma te pergunta se pode ser a lápis. E quando passa no concurso, é recebido pela diretora com um sorriso amarelo de quem achou que a prefeitura tinha escrito “Bernarda” errado na documentação. Mas no caso dela era só porque não queria acreditar que era você mesmo.
   O caso é que eu frequentei aquela creche quando criança. Mas um belo dia quando eu tinha cinco anos aconteceu uma coisa... Engraçada.
   -Tia Gertrudes mandou trazer! – Meu pequeno eu entrou na sala da diretoria com uns papéis e deixou na mesa.
   -Ah, obrigada, querido!
   -O que é isso? – Perguntei, notando que vinha uma música esquisita do rádio.
   -Ah, você gosta? É uma música que a tia gosta, de um lugar bem longe chamado República Tcheca!
   Enquanto ela falava um vento passou e fechou a porta sem fazer muito barulho, e não notamos por causa da música. Então, saio da sala para voltar para o parquinho. Quando chego, tia Gertrudes pergunta:
   -Onde estava, Bernardo?
   -Eu tava com a tia Valéria! Ela me mostrou à tcheca!
   -Ela o que?
   Tia Valéria ficou presa por oito anos depois de eu confirmar para a polícia meia hora depois. Mas peguem leve, eu tinha cinco anos, não sabia falar “república”! E bom, o caso é que hoje eu trabalho na mesma creche... Onde ela conseguiu voltar a ser diretora.

   * * *
   Meu dia começava na sala do sono, onde as crianças dormiam nos colchonetes, por volta de meio dia. Eu era o responsável por cuidar, junto com duas colegas, das crianças que ficavam lá o dia todo. Elas tiveram aulas com os professores pela manhã, e agora ficavam conosco. O silencio era grande, apesar de ter coisa de umas vinte crianças dormindo ali. E minhas colegas ainda não tinham entrado na sala. Para que ser pontual quando o seu colega é, não é mesmo? Aquele era o momento também em que eu divagava sobre as questões do universo, tipo, quem somos, para onde vamos, porque aquele menino ta dormindo de quatro e porque aquela garota ta quase engolindo o pé do outro e não acordou com o cheiro.
   -Boa tarde!
   Entrou a Ivana na sala. Não se deixem enganar por aqueles cabelos negros até a cintura, os olhos verdes e o andar metido de uma Kardashian (da zona leste). Ela não era exatamente uma boa pessoa. Ao contrário, a gente não foi com a cara um do outro desde o começo, apesar disso, a gente se respeitava ali no ambiente de trabalho.
   -Boa tarde! – Respondi. – O Gabrielzinho não veio!
   -Oh, Glória! Q-quer dizer, nossa! Ele nunca falta né?
   Só não julgo porque foi exatamente o que eu pensei. Gabrielzinho tinha dois anos e meio. Ele é o tipo de criança que dá trabalho por quinze, mas quando você lembra-se daqueles olhinhos azuis e as mãozinhas no ar pedindo colo, você não consegue mais ficar bravo. Alguém assistiu muito Gato de Botas aqui! E de fato a mãe dele nunca deixava ele faltar, pelos motivos mais óbvios. Então, chegou alguém.
   -Oi, gente! Boa tarde! Ivana, como estão as coisas em casa? Eu vi no seu instagram aquela foto em que você... – E segue. E segue. Segue forever!
   Essa era a Rita, alta, magra e morena. Até hoje tenho uma teoria de que ela vinha trabalhar a base de uns três litros de energético. Eu juro que não acreditava em felicidade as segundas feiras ou satisfação com casamento antes dela. Na verdade ainda não acredito muito, por isso a teoria do energético. Mas ela de fato era uma das melhores educadoras ali e uma das pessoas com quem mais tenho aprendido. E por fim, de todas as colegas com quem trabalhava diretamente, a melhor atravessava a porta. Eu costumo dizer que a relação com uma pessoa se desenvolve por etapas, sendo elas “conhecido”, “colega”, “amigo”, “grande amigo”, “melhor amigo” e “parceiro de crime”. E para mim, só faltava confirmar com ela se sabia esconder um corpo! Essa era a Carla, forte como um touro, e de longe a melhor pessoa daquela instituição!
   -Boa tarde, gente!
   Quando chegava ela simplesmente se sentava e olhava com a cara fechada para as crianças que por um acaso estivessem acordadas, mesmo que em silencio. Era um aviso. E depois do aviso vinham às conseqüências, e as crianças sabiam disso desde o começo do ano.
   Olhei no relógio. Era minha hora de acordar as crianças, enquanto Ivana, Rita e Carla ajudavam a arrumar elas, pentear o cabelo das meninas, ajudar as crianças a colocar os sapatos e etc... Tirei os sapatos e subi nos colchonetes. A grande questão para mim nesse momento era que alguns deles simplesmente se recusavam a acordar, e tinha uns que no começo eu me perguntava se não estavam mortos. Quem me assustava no começo era a Diana, três anos, que você não podia encostar e ela já começava a chorar e se debater como se estivesse sendo torturada na Alemanha nazista. E sobre todos esses, eu juro que às vezes tinha vontade de, só para sacanear, ir até o meio dos colchonetes, aproximar as duas mãos da boca e:
   -COOOOOOOOOOOORREE NEGADA! TÁ PEGANDO FOGOO! TÁ PEGANDO FOGOO!
   Mas seria muita maldade, sem mencionar que dois ou três, incluindo a Diana, iam preferir morrer no incêndio. Aí deixava quieto e fazia o trabalho do jeito mais difícil mesmo. O pior era o Carlinhos que além de acordar eu precisava voltar de minuto a minuto no colchonete dele para ver se continuava acordado. Mas eu não o culpo. Se eu tivesse aquele cabeção também pensaria algumas vezes se vale o esforço de levantá-lo. Aliás, a mãe dele realmente era uma guerreira: Deve ter sido realmente difícil por aquela cabeça para fora.
   -Vai! Levanta, carinha! – Eu insistia. – A gente vai tomar café daqui a pouco e brincar depois, e eu sei que você gosta de brincar! – Lhe fazia um carinho no cabelo.
   Verdade seja dita, eu tiro sarro da cabeça dele, mas ele é um dos meus preferidos. Gosto de todos, mas meu santo bateu com o dele. Era uma das crianças que me fazia ficar pensando no filho que terei um dia. Fez um esforço de levantar e foi buscar os tênis, sorrindo. Por sinal, outra coisa que gostava nele. Sorria fácil. Tipo, bem fácil mesmo. Porque não conheceu a vida adulta, é claro, mas ta valendo. Nesse dia, eu tive que acordar ele na mesa do refeitório também. Deu para ver que aquele seria um longo dia.

   Continua...

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   Uma coisa que é importante esclarecer. Todos os personagens e situações aqui mencionados não se relacionam diretamente com nada que exista no mundo real, sendo qualquer coisa, mera coincidência. Eu tenho alguns anos de vivência no ambiente de creche entre estágios e trabalhos, e passaram por mim algumas dezenas de pessoas e algumas centenas de crianças. O propósito dessa série é mostrar, de maneira bem humorada, mas realista, o que é o trabalho nesse ambiente e como o profissional de educação, no fim das contas é um ser humano como eu e você, lutando no dia a dia para sobreviver!
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